domingo, 30 de maio de 2010

Canção de amor

Eu não pensei que o amor fosse tormenta,
incisões na pele, tatuagem na alma
e um tremor que toma conta de todos os espaços
em volta do nosso ventre, Jesus.
Eu não podia avaliar que o amor era Tanatos
nos levando nos seus braços de espinhos
e adiando, por falta de compaixão, a nossa morte.
Nunca pude perceber que o amor
fosse uma formação de nuvens negras, de cheiro forte,
agora e na hora de nossa morte, amém.
***
Descobri o amor, senti que te amava
com a ternura dos cisnes e o furor dos genocidas,
quando partiste.
(Poema de Nathália de Sousa in Poemas Devassos e uma Canção de Amor, foto de Sandra Porteous)

sábado, 22 de maio de 2010

Ouve, amada

Ouve, amada, o som da flauta desvirginando a manhã.
É o que a minha alma tem de mais mística e de pagã.
***
Ouve, amada, a sístole do tambor enquanto a vida segue.
É o meu coração que não sabe ser triste nem alegre.
***
Ouve, amada, um fio de som na noite fria, outonal.
É o cantochão da minha tristeza de vidro e de metal.
***
Ouve, amada, a música festiva na pequena praça da cidade.
São os guizos do meu amor, minha ternura com alarde.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Diário Íntimo da Palavra, foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Junqueira Aires 371

No casarão de onde se vê o rio
e o casario da velha Ribeira,
o homem insone, de vasta cabeleira,
olhos gastos de tantas mil leituras,
viaja em muitas páginas.
Transforma a aridez das pesquisas
em doce erudição, novos mundos,
portas abertas: Áfricas redescobertas
por caminhos nunca dantes percorridos,
redes de dormir com varandas para o infinito,
Mula sem Cabeça, Saci e Lobisomem,
Civilização, a Grécia como fonte e estuário,
Caipora e Papangu, o sorriso e o grito
que há no fundo do nosso imaginário.
***
O homem, que vai passar mais uma noite insone,
em rica solidão, rico silêncio, sabe de tudo.
Viaja em torno de si mesmo, em seu oceano,
na circunavegação de Luís da Câmara Cascudo.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Autobiografia Poemas)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Solo desafinado para Nei Leandro

Quero o poema tão claro
nas coisas que pretendo dizer,
que na viagem da noite
pelos caminhos da madrugada,
ao falar na manhã que vai chegar
todos vejam o dia acabando de nascer.
***
E quando o poema fala de amizade,
saibam de que amigo quero falar.
Amizade que existe e para existir
tem trutas atravessadas na garganta,
contradições, mágoas, desencantos,
e não se cansa, sempre recomeça.
***
Verão de um calendário só dezembros
andando nos caminhos da madrugada,
manhã acabando de nascer
no grito amarelo dos cajus,
se reencontra no primeiro abraço
do ontem de hoje e depois de amanhã.
***
Não descompassou o coração nas alturas
quando viajou mundo pela mão do amigo.
Solo de pandeiro, cuíca e violão,
amizade que distribui o pão
e a mostarda da alegria,
bebe tristeza se o vinho faltar.
***
Amizade de lágrimas repartidas
num velho filme de Frank Capra,
antenas ligadas no cio da noite,
no bar Acácia descobriu a poesia
no fogo brando do primeiro conhaque,
no ouro amargo de uma cerveja Brahma.
***
Parentesco maior que o do sangue,
a amizade existe, sempre existirá.
Como quero o poema tão claro
nas coisas que pretendo dizer,
ao falar de amizade todos pensem
no amigo Nei Leandro de Castro.
(Poema de Luís Carlos Guimarães, publicado na Tribuna do Norte em 24/08/1986)